quarta-feira, outubro 5

Me dá um cigarro

Deu a última tragada, lançou a binga como num arremesso frenético o qual se pretende fazer uma cesta de três pontos, aquela que salvaria toda uma partida visceral e ofegante, em seus últimos instantes de bola quicando, pegou do bolso o maço já amarrotado e roto e, sem encarar por mais que dois segundos aquela face sórdida de rato-humano à sua frente, ofertou o pedido sem mesmo esboçar qualquer fisionomia contendo sequer um mínimo de animosidade e logo adiantou o ritmo demasiado de seu andar, puto dentro das calças, extremamente puto, muitíssimo puto, puto pra caralho, envolto de pensamentos que emergiam no mesmo abismo gélido e aborrecido que havia se deparado em suas tantas buscas labirínticas e mordazes, bêbadas, turvas, ziguezagueando por demais esquizofrênico, feito um mosquito que, após sugar o sangue quente de uma coxa robusta, sofre um tapa incerto, embora impactante, e alça um vôo desmedido e irregular, sentindo a dor terrível nas mesmas patas imundas que agora limpam o sangue dos cantos da boca, quase sorridente, em sua ínfima importância de ser só e tão somente o alvo preferido de uma guerrilha munida de sprays e pastilhas, prontas para mandar aqueles lixos alados para o inferno, “que mordam o diabo!”, mas eu dizia do moleque que pediu cigarro irritando ainda mais o juízo já efervescente de nosso herói sem mocinha, não pelo cigarro, foda-se o cigarro, mas pela chateação grotesca de ser parado no meio da rua e imediatamente desviado de suas conclusões e disparates mais cretinos e insanos. Desceu as escadarias do metrô, universitários barbudos e punheteiros, garotas com roupas que mais lembravam uma nítida regressão a uma infância decadente, muito pouco, ou basicamente nada construtiva, alguns trabalhadores engravatados com a face rude, contendo alarmantes olheiras, de quem simplesmente degusta uma realidade com cheiro de merda e pinho-sol, se ajeita num canto mais destacado, como se fosse possível em plena 18 hs na estação Cinelândia, uma bossa-nova enfadonhamente careta e regrada ressoa das caixas laterais, cessando toda a malandragem e descompromisso dos reais motivadores desta manifestação musical, e os dizeres redigidos em letras garrafais transmitidos nas tevês de plasma, em português e inglês, enfatizando o espírito “maravilha” dos cariocas e convidando cinicamente os turistas a embarcar neste movimento, quando o que se percebia ao redor era um amontoado de ações fugidias e vorazes, abstrai estes pormenores até escutar o ferro dos trilhos estremecer e logo avistar o transporte se aproximando, entra sem olhar para os lados e tenta se acomodar com tamanhos olhares que mutuamente se revezam em sua direção, já que dentro do metrô não há mesmo um menu extenso de possibilidades no que diz respeito ao que será olhado, o jeito então é cada um se encarar sutilmente ou almejar se distrair com a escuridão atordoante por detrás dos vidros, segue contando mentalmente o número de estações, já sabendo de cor o que dirá a voz fantasmagórica da locutora, chega a sua vez, “Próxima estação, General Osório, desça à direita”, sai esbaforido daquele compartimento, sobe as escadas rolantes observando, por rotina, os quadros e mosaicos que decoram o ambiente, enfim chega à calçada e então caminha pensativo pelas ruas de Ipanema, já elaborando todo o texto que será dito para desmistificar todo o caos, pensa inclusive no tom mais preciso para se iniciar a primeira frase, a entonação ideal que virá a seguir e assim por diante, tudo minuciosamente planejado e arquitetado pelo herói sem mocinha, enraizando desmedidamente furor e agonia em seu peito dilacerado da falta latente e crua das coisas mais simplórias e habituais, o café recém passado e o jornal sobre a mesa, o baticum dos saltos dela sobre o chão da sala, o desconcerto de ambos ao ter que escolher produtos que jamais usaram nas compras do mês, a revista de moda que ela lia o fazendo gargalhar de suas fisionomias deslumbradas, o romance de Sacheri que compartilhavam nas tardes de sábado, os tênis e meias que ele deixava relapsamente sobre o tapete do banheiro, a sua pinta na bochecha que ela adorava beijar e agora habita solitária e nostálgica em sua face pálida e descabida.

- Ô prayboy! Erva, cocaína e crack. Erva de 10 e 25. Cocaína de 30. Crack de 5. O crack tá “envolvente”, saca de “envolvente”, né mermão? Tá “envolvente” pra caralho, pray!

Ele faz que não com a cabeça e continua a sua caminhada, escutando a seguir a mesma chamada do aprendiz de traficante para outro transeunte.

- Ô prayboy! Erva, cocaína e crack. Erva de 10 e 25. Cocaína de 30. Crack de 5. O crack tá “envolvente”, saca de “envolvente”, né mermão? Tá “envolvente” pra caralho, pray!

Dessa vez o trafica teve mais sorte, o “pray” do momento resolveu fazer compras no mercadinho, e passou apressadamente por ele cheirando a trouxa de maconha para definir a qualidade do produto, até sumir completamente de sua visão dobrando uma próxima esquina. O herói sem mocinha atravessa o sinal já sentindo o baque incessante e impetuoso bombeando seus músculos e artérias, rumando a direção da praia, logo avista o seu prédio, agora dela, cumprimenta uns vizinhos que passeiam com os cachorros, vizinhos estes agora dela, entra rispidamente no edifício, agora dela, e faz uma piada infame sobre o último jogo do Flamengo com o porteiro, agora dela. Abre a porta do elevador, aperta o botão número 7, e fica alternando entre se observar no grande espelho ou se perceber registrado pela câmera acima de sua cabeça, bobagens com o intuito de esmaecer o conjunto de reverberações ensurdecedoras que lhes cabe. Espirra três ou quatro vezes, enumera respostas a serem ditas de imediato, sem deixar restar qualquer instante de desconfiança, sombreia uma maneira particularmente peculiar de direcionar o seu olhar quando a avistar vestindo uma blusa velha, grande, com o desenho do Mickey à frente, e seus cabelos deliciosamente presos num coque, enfatizando ainda mais as formas delicadas de seu rosto, a sua face fingindo surpresa, enquanto lhe diz numa frieza também calculada que já está terminando de pintar as unhas dos pés, desnudos e salientes bem ali próximo aos seus lábios que anseiam lambê-los, e que assim que der a última pincelada irá passar um café fresquinho, quando ele dirá que não precisa, que ele mesmo pode passar o café e que ela pode, isso ele dirá obviamente irônico, continuar a sua experimentação acerca dos desfrutes aborígenes de colorir o próprio corpo, ela responderá prontamente, retirando o palito que segura com a boca, que tira o excesso de esmalte nos cantos das unhas, já que ambas as mãos estão ocupadas entre pincel, frasco, algodão e acetona, que nunca ouviu falar disso e que ele não tem consistência real e relevante do que acabou de citar, ele prontamente irá dizer que leu no Google, e ela cairá em gargalhadas, deixando o pincel cair para alivio dele, dizendo que o Google não possui fontes realmente plausíveis e que qualquer filho da puta pode criar um site e dizer, por exemplo, que possui o manual secreto que acarreta no modelo de conduta de um casamento exemplar do tipo que o marido, em nenhuma hipótese, transaria em cima da mesa do escritório com a putinha da secretária que mal fez dezoito anos, o que fará com que sua face exploda num fogo transparentemente visível e o deixe consternado buscando qualquer explicação notória, que faça um mínimo de sentido, excluindo imediatamente todas as possibilidades de respostas e pensamentos os quais ele já vem elaborando a dias, incansavelmente e incessantemente. O elevador pára no quinto andar, as portas se abrem, uma bichinha com reflexos nos cabelos lhe pergunta, mais feminina que a sua sobrinha enquanto brinca de boneca, pondo os braços dentro do elevador para fazer com que, propositalmente, ele não prossiga.

- Tá descendo?

O herói sem mocinha indica com os dedos que está subindo, a bichinha ainda faz mais algumas retaliações sobre o elevador até que finalmente deixa ele seguir o seu destino, o indicador digital prediz sexto andar, respira fundo, sétimo andar, chegou o momento de então desfazer todas as atrocidades que pairam nas entranhas já abarrotadas de cismas, neuroses, mágoas, olhos marejados, fragmentos de um passado onde juntos esboçaram planos e idealizações, e andaram com ar de casal vinte pela orla, é o momento de desfazer qualquer insulto e despudor da cena catastrófica o qual foi surpreendido por ela, a hora de cessar esta lacuna densa onde habita o inverno da Islândia, caminha demasiado pelo corredor, reconhecendo-se em cada parte mais minúscula daquele caminho, até chegar frente à sua porta, agora dela, que escutará o barulho das chaves do herói sem mocinha, como em todas as noites em que viveram ali, e fatalmente irá dizer lá de dentro que o jantar está quase pronto e se ele sabe onde pôs as taças que sua mãe trouxe de Curitiba, hoje não disse coisa alguma, ele já esperava, reformula olhando para a porta todas as frases de impacto que almeja dizê-la, abre cautelosamente, em passos curtos, todas as lâmpadas apagadas, “ela deve estar dormindo”, acende a luz da sala num rompante de nervosismo e desespero, seu olhar confunde-se entre o pânico e a desgraça, não há ninguém ali, sendo mais exato, claro, é o que vocês esperam, não, não há nada ali, mobílias, luminária, tevê, quadros, bar, chinelos, fios de cabelo pelo chão, cheiro de café, não há nada, o que ali habita é um cheiro de ócio, de tempo parado, de instantes corrosivos e parcos, o apartamento lhe parece ter envelhecido algumas décadas, o seu corpo se esmera para não tombar neste ambiente inóspito e lúgubre, o herói sem mocinha insiste em caminhar pela sala, depois até a cozinha, se impressiona porque nestes momentos de tormenta é tomado por uma calma quase dadaísta, fica anestesiado, ao ponto de entrar no banheiro e fazer um xixi, pensa, repensa, transpõe as mais variadas lógicas e os mais mórbidos sensos, quanta aberração, quanto surto, e estas entrelinhas dando margem à esta infinita variação metafórica, qual o sentido, a coerência, o porquê. Ou ela esperava o primeiro vacilo realmente feroz do herói sem mocinha para simplesmente dar no pé? Não, ela não esperava. Ela o amava, ela o disse que o amava, várias vezes, muitas vezes, de todas as maneiras. Fica paralisado até sentir um misto de soluços e gargalhas, procura um sofá, não há mais sofá ali, lembra-se, e continua enlouquecendo nesta conseqüência de choro e riso nada eloqüente. Vai fumar na janela, um, dois, três cigarros, sem café. Porra, sem ela e sem café. Quanto desespero! Quanta abstinência! Ele ainda não entrou no quarto, será por demais forte pra ele adentrar no local onde muitas vezes se amaram, e disseram-se coisas deles, tão deles que não me cabem trazer à tona, tampouco cabem mais neste espaço oco onde a ressonância da voz trêmula não responde com o mesmo eco, parece dizer “Tenha calma. Ou não tenha calma. Não importa. O fato é que você já não tem ela, herói sem mocinha. Então rezar um terço ou socar a parede só resultará na ignorância eminente de quem seca gelo para resolver uma equação de álgebra. Portanto, soque o terço e reze a parede. Ou então, vá comer de novo a putinha! Ou pedir cigarro na rua, ou vender crack de 5, ou dar a bunda embaixo da bandeira, otário!”, a porta do quarto ainda está fechada, ele a abre laconicamente, não a vê deitada na cama – imaginária - assistindo a novela das sete, bocejante e frágil, linda assim sem maquiagem, linda assim sem colar de pérolas, linda só de blusão e calcinha, sua. Avista de imediato o seu violão num canto enfadonho, abaixo do instrumento, encontra um papel dobrado, meticulosamente dobrado, cuidadosamente dobrado, senta ligeiro no chão, desdobra ágil o papel, é ela, é a letra dela, cara, veja, é um bilhete dela, mais valioso que todas as mobílias e fios de cabelo pelo chão, um bilhete dela, pra ele.

“As feridas em carne viva. Ponho merthiolate, arde tanto, eu sopro, sopro e sopro de novo. Até passar, não passa. Não tenho mágoa, não tenho ódio, tampouco almejo vingança, nem. Me perguntam de você, digo que não sei, então se espantam em demasia e eu quase enlouqueço. Nunca perguntam de mim, porque caso perguntarem, direi que não sei também. Iriam tentar me internar, talvez, ou me indicarem um cruzeiro, uma vodka, um marido. Eles teimam em insistir numa fisionomia áspera e decisiva, como quem sabe realmente o que fazer quando acaba a luz e não há ninguém em casa para dividir as suas faltas. E, sabe, tem me faltado tudo. Inclusive você. Quanta ironia! Pra me fazer curativos e um chá de pitanga que cure esta gripe, adquirida, claro, pela baixa imunidade que você me causou. Você é o culpado, é também um canalha, um pervertido, é portanto, homem e, sinceramente, não há mesmo mutações nesta espécie que faça, de fato, diferenciar nitidamente um do outro. Eu sou outra. Você é outro. Será exatamente isso? Acho que não, não mesmo. Eu acho um monte de coisas, seus óculos, suas meias, seus livros de cifras, suas revistas velhas, minha saudade, meu amor doído, este que necessita de um antipirético, um antialérgico, um antigripal, um antes. Antes daquilo. Antes disso, destas feridas, destes abismos. Antes das 22, te espero aqui, Rua Assis n° 18, ainda estou arrumando toda a bagunça, preciso de alguém que ponha os quadros, as cortinas e troque a lâmpada do quarto. Preciso de alguém que sorria dos meus trejeitos, que implique com os meus barulhos de manhã e que me faça crescer até quando me encontro emaranhada de tristezas que não cabem neste meu coração carnavalesco, acalorado, exaltado de sentimentos que transbordam. Você é um filho da puta! E eu? Eu sou tua.”