sábado, novembro 28

Âmago

Trecho do meu livro, ainda em processo, flores nos jarros, chuvas à sós.



Pega um livro sobre a estante, “Terras baixas” de Joseph O’neill, lê nove capítulos numa só entrega, alimenta-se de tais palavras qual fosse seu alicerce, um porto-seguro, afagos sutis em seus cabelos rasos e sedosos. Anota num bloco algumas frases de impacto, quer pensar sobre elas, almeja encontrar algum sentido que lhe faça balbuciar o seu peito, esquece do tempo, esquece de si e de tais feridas, não sente vontade ligar para alguém e contar suas já antigas lamúrias, por um instante se esquece de todas as dores que tanto o assusta, em noites de frio e vagos cafés, aprimora seus faros ainda há pouco tão desarmados, quer fuçar cada lástima e todo o desvario, plantar qualquer semente que faça florescer este gosto de novos ares em seu peito cansado de tais compaixões, deseja somente seguir este fluxo, encontrar seu caminho, caminhar rente aos seus destinos, que fazem-se junto aos seus tantos passos, tudo cíclico, brados contínuos, como o descompassar deste coração temeroso, escondido em seu casulo de puras penas, maltratado e por vezes ignorado, como então agir firmemente tendo sobre o peito um gélido órgão pulsante e sem vida?Quer removimentar, reinstaurar cada bloco de pedras, quebra-las com as mãos, e talvez até construir algo que valha quiçá um verso, ou apenas um riso. Ou então jogar fora estas quinquilharias, esquece-las de uma vez por todas, permitir-se alterar os climas, mudar os quadros na parede, deixar a barba por fazer, barba de quatro ou cinco dias, mostrar-se cru, nu aos olhares dispersos e atentos a cada gesto mais afoito do primoroso músico, não mais compactuara com estes ensaios de bom moço, não quer mostrar-se feito um fantoche esquizóide elaboradamente fantasiado por um pálido executivo do atual mercado fonográfico pop, quer apenas mostrar-se como é, e isto, pensando racionalmente, não é pedir muito. Lhe custa abundantemente caro estes retratos de sorrisos prontos, não se percebe ali, parece um personagem, não um personagem vanglorioso como estes dos bons romances que lê, mas um personagenzinho mediado, igual aos demais, um belo rosto de propagandas de margarina, com roteiros felizes e insuportavelmente perfeitos, feitos e refeitos, elaborados por equipes especificas, tudo criado detalhadamente para impressionar, causar impacto, ressoar gritinhos de “u-hul” em adolescentes fantasiosos e deslumbrados, não quer mais este estigma, não pode mais admitir tal brutalidade contra a sua própria natureza. Decidiu mandar uma meia-dúzia ir para a puta que o pariu, caso fosse necessário. Mas já não fará este tipo de cena, com textos decorados, luz prontamente idealizada, palavras encantadoras e singelas. Sente nojo, um certo despudor, quer andar um pouco, escutar umas canções em seu Ipod, olhar o mar, fechar os olhos e sentir a brisa calmamente acariciando seu rosto, depois comer em alguma lanchonete onde se sirva uma batata-frita decente e coca-cola sem gelo, quer apenas isso, agora.Poderia querer mais, poderia alugar um jatinho e ir ver a noite caindo em Barcelona, ou então arrendar a suíte presidencial do Copacabana Palace e dar uma festa só para putinhas de classe média, todas moradoras da Zona sul, sedentas por pirocas cravejadas de brilhantes e farta quantidade de cocaína sobre um tampão de vidro. Mas não, não pensa em coito agora, não se impulsiona a tal aventura jovial. Quer apenas comer as suas batatas, tomar sua coca e ouvir Rosa Passos tranquilamente, sem pressa, sem procuras nem autógrafos ou fotos posadas com eufóricos transeuntes. É o que fará, encontra um boné em seu closed abarrotado por roupas enviadas pelos mais badalados estilistas do país, veste uma calça “Diesel”, apanha suas havaianas e uma camiseta branca, confortável e fresca, pega sua carteira e as chaves sobre a mesa, e sai sem destino prévio, não leva o celular, não quer ser encontrado por ninguém, adora fazer isso, enlouquecer de preocupação suas sempre disponíveis assessoras, ultimamente, inclusive, este tem sido o seu esporte predileto.


Embaraçado. É assim que se sente. Desde o fio mais escasso dos seus cabelos, até a ponta do dedo mindinho dos seus pés robustos e brancos como nuvem. “Tudo é uma questão de respirar fundo, contar até dez, respirar novamente”, já escutou este conselho centenas de vezes, e chega a ficar impaciente quando o mesmo se repete. Tem tentado seguir esta máxima, mas confessa que isto não está lhe oferecendo nenhum ganho específico, pelo contrário, se sente um monge gordo tibetano, daqueles que se dizem levitar, e logo nota-se ridiculamente idiota, por ambos os casos: um por ter tentado seguir esta técnica de respiração atenta, em vão, dois por ter zombado anarquicamente dos tais monges gordos tibetanos, que nada tem a ver com esta trama. “Se for pra me foder, que seja com você meu bem...” , pensa isto e cai em gargalhadas, e logo emenda outros pensamentos tão insignificantes e inglórios como este, idéias irrelevantes, feito bilhetes entregues por baixo das portas, poeiras antigas por sobre os tapetes, esquemas de refúgio para singelos namorados comerem todas as negras que encontram no cardápio, simplicidades e abstrações, já deu no saco esta palavra: abstração. Acho que ninguém agüenta mais ouvi-la, portanto não direi mais, procurarei um sinônimo, um destes bem acertados, ajeitados detalhadamente, lapidados em frias têmperas, editados e publicados no auge de seu mais sublime sentido. Mas agora não, nem daqui a pouco. Agora somente me cabe contar as suas astúcias, quer mesmo pensar em asneiras, falar umas safadezas por telefone, tocar uma punheta, acender um cigarro. Pode parecer simplório aos olhares esquivos de estranhos leitores, talvez soe um tanto rebelde, palavras assim, tão desajeitadas, mas onde me movo, e o que posso ver, é mais disforme do que os labirintos dos sonhos derradeiros, ressonâncias mórbidas, cheiro de um perfume “doce travesti”. Existem três tipos básicos de perfume: masculino, feminino e “doce travesti”. Era justamente este último que Sofia usava, inalando seu cheiro por todo o apartamento, inebriando homens e garotos e até algumas mulheres mais atiradinhas. Ao final de sua gargalhada repentina, lembra-se da água que havia deixado no fogão, vai preparar uma massa, faz tanto tempo que não cozinha para si, depois abrirá um vinho de boa safra e ficará ali, com sua massa e o seu vinho, e os seus pensamentos irrelevantes tal como aquele que lhes contei, “se for pra me foder, que seja com você meu bem” pensa de novo, mas dessa vez não ri, pelo menos não tanto como na primeira vez, talvez por ter caído na real, entendido exatamente o que quer dizer isso, precisa de um terapeuta, pra agora, num tempo de urgências, quer esmurrar a porta de um consultório e entrar aos solavancos, contar todos os seus abismos e tempestades, atirar para o teto cada vômito e tormento, seus dedos goela abaixo mostrando-lhe evidencias que jamais quis escutar, mas já está um pouco tarde, passou das 22 horas, vai ter que deixar isso pra depois, ele sempre deixa “isso” pra depois mesmo, precisa pensar melhor, nunca aceitou muito bem o fato de expor suas feridas com tamanha clareza e, no fundo, também tem a plena consciência de que terapeutas igualmente choram descompassados em noites cinzas, fazem massas só para si, tomam vinhos de safra ruim, argumentam pensamentos chulos, recitam versos de Ana Cristina César assim meio-para-alguém-meio-para-o-vento, ajustam ponteiros e contam minutos, desabam suas facetas de super poderosos a cada toque mais sutil e femíneo, são humanos, portanto, sofrem de amor e odeiam suas mães, como todos, e pasmem, é verdade, até fazem cocô.


- Alô?
-Oi Júlio, sou eu...

Naquele Eu reconheceu todas as suas dúvidas, seus descompassos, tantos tropeços. Enxergou com minúcia cada palavra não-dita, no torpe silêncio que precede algum desfecho, algum caminho. Ressonância atordoante, feito trovoadas, naquele baque monumental, intenso, voraz. Foi neste Eu que um dia perdeu-se inteiro, e se entregou num labirinto de pernas, nucas, peitos, braços, lábios, e numa noite dessas lacrimejou lembranças, entristeceu todos os porta-retratos, emoldurou canções de amores findos, recolheu cada aroma que restara, qualquer rastro sutil, algum bilhete, uma blusa esquecida, algum pequeno presságio, neste Eu que um dia fora ele em tantas formas, em muitas forças, entrega plena que desfaz-se bruscamente, sem restar tempo algum para compreensões, entendimentos, indagações, ferida ainda aberta que incessantemente pulsa, lembrando, segundo a segundo, o estrago devastador de uma rude tempestade, já não há casa, já não há folhas, versos, já não há risos, não há cortiça, nem planos, nem quartos, as portas já não batem, as chaves se perderam, todas as chaves, trancando em si também todos os vãos sentidos.

- Ah sim, pode falar, Sofia.

Júlio responde em tom ríspido, faz toda a força que lhe cabe para parecer seguro.

-É com relação aos papéis, como você sabe estou noiva, e chega um momento em que é preciso se decidir, não dá pra ficar adiando...
-É verdade, não podemos deixar as coisas pela metade!
-Te liguei para saber como faremos...
-Faremos do jeito que você quiser!
-Falei com meu advogado, ele disse que vai precisar de algumas assinaturas, somente. Não será tão burocrático!
-Ótimo então! Peça pra que entre em contato com o meu, te mando os detalhes por e-mail.
-Ok, pode ser. Está tudo bem contigo?

“Como está tudo bem comigo? Irônica. Sarcástica. Insolente e frígida!”

-Tudo maravilhoso e com você?
-A vida anda corrida, mas nada que me desanime!
-Que ótimo!Você nunca foi desanimada mesmo...
-Pois é!Estou voltando pro Brasil para cuidar de tudo e resolver algumas pendências na empresa.

Júlio sabe que Sofia nunca se importou com a empresa do pai, um arquiteto renomado, investidor do mercado imobiliário. Acredita piamente que ela só virá para assinar os cujos papéis, sua carta de alforria programadamente elaborada.

- Quando chega?
-Dia 14 de setembro, uma terça-feira!
-Tudo bem, a gente se fala...
-Tentei te ligar ontem à noite!
-Ontem à noite eu nem existia...
-O quê?
-Nada, apenas um pequeno devaneio...

“Porque eu fui falar assim, meu deus? Essa minha mania cafona em emoldurar frases de impacto.”

-Não quero que tudo fique distante entre a gente!
-Mas as coisas estão distantes, não podemos fugir do que é óbvio!Neste momento, por exemplo, um oceano inteiro nos separa!
-Às vezes até me esqueço disso!
-Tudo bem, Sofia, mas eu não!
-Desculpe...
-Não tem que se desculpar!A vida é como é, e eu sinceramente mal sei o que te dizer...
-Então não diga nada, apenas sinta!
- ( )
- ( )

Uma pausa abissal toma o corpo de ambos, como modificar este tom?Porque então não trataram logo de se esquivar de qualquer assunto que remetesse ao que viveram? Poderiam ser mais simples, apenas tratar dos papéis e pronto, mas não...lá vem o passado todo desenvolto, pronto para dilacerar o presente já tão enfadonho e deixar um quê, um nó sem gravatas, num futuro próximo.

-Eu vou ter que desligar, meu querido! Te quero bem...

Odeia quando lhe chamam assim. Ele entoa a voz.

-Também te quero!
-Me promete uma coisa?
-Se não for algo exageradamente sacrificante...
-Acho que não é, só queria te ouvir ao violão cantando “Turvos olhares”...
-Vou pensar e te digo...

Ele ri, impactado. Ela não entende a resposta, mas faz que entendeu.Não quer desconsertar a conversa mais do que já está desconsertada.

-Então, sendo assim, pense direitinho...
-Você só pode estar brincando comigo!
-Eu estou falando sério!
- Faça o seguinte, ponha o disco pra tocar e ouça duzentas vezes...
-Você sabe que não é a mesma coisa!
-É, eu sei exatamente que não é a mesma coisa! Nada entre a gente é a mesma coisa!
-Eu não quero mais falar da gente!
-Foi você quem me ligou!
-Para falar dos papéis...
-Danem-se os pápeis!
- Bom, eu vou encerrar esta conversa! Me desculpe, mais uma vez...

Júlio desliga o telefone sem se despedir, antes mesmo de Sofia terminar sua frase. Um desacato, um sorriso frouxo bem na sua cara, cara pálida de quem esqueceu o caminho de casa, de quem perdeu o dinheiro da passagem e caminha insolente pelas ruas de Praga, algum solavanco lhe toma o peito, já não sente suas pernas, quer tomar um banho demorado, uma ducha perfeitamente morna, precisa abundantemente se sentir limpo, limpo de toda aquela sujeira, daquele assunto deslavado, daquela voz meticulosamente serena, sente-se um pierrô com roupas rotas e abafadas, quer esquecer este telefonema, esquecer estes papéis, esquecer o nome da mulher que ama e tal oceano o qual ela mesma disse por ora esquece-lo. O telefone toca de novo, Júlio atende impaciente.

- Sou eu ainda...
-O que você quer?Acabar com minha noite?
-Quero dizer que eu vou te ver quer você queira ou não...
-Ok, Sofia. Boa noite pra você!

Ele desliga de novo, num só ímpeto, encosta numa das bordas do confortável sofá, acende um cigarro, e chora feito um menino arredio que se perdeu da mãe, em plena avenida paulista, tomada por gente, carros, buzinas, monóxido de carbono e amores distintos, desfeitos, confusos, na contramão dos instintos mais precisos, viscerais, opostos aos sentidos palpáveis, cintilantes, tudo vago, vário, lacunas partidas, exaustivo breu.

sexta-feira, setembro 18

O parto

Para mim


Não, não é pra ninguém estas palavras que arrebento, embora liberto de tais comiserações, ainda trago algum ranço de raiva ou descaso, puras lástimas, fortes apegos. Já não me movo pela casa, o quarto é o meu abrigo mais redentor, não almejo sinas nem estradas, apenas algum vento norte que entre pelas frestas alardeando algum presságio. Nenhuma sigla eminente, as senhas revelaram-se frágeis e deveras claras, não almejo o verbo mais intrínseco, não sei dos versos que esboço, meu nome é um amontoado de memórias e instintos, ao ponto de levar-me ao pé do mais poroso abismo, todos os perigos, uma noite escura. Agora mesmo ponho-me a dilacerar tais feridas, esquecer cada frase insuspeita, hesitar um poema perdido, por entre gavetas, bem no fundo do sem fundo das coisas que deixei para trás, a poeira sobre os livros, alardeando os dias e cada clima esperado, a fonte que deságua ininterrupta, segundos e sentidos que se rompem, sua noite é um embaraçar de suores e desejos, sonhos de brancas nuvens, infantis idealizações, príncipes e sapos, bucetas e pererecas, nenhum trafego comedido, tudo frio e um tanto desalmado, as putas fumando nos becos, os velhos catando quinquilharias, é o que lhes restam, é o que me cabe, já não vejo suas cores, cinzas de um diário popular, quase algum arroubo, uma espera bêbada, talvez um descanso – estaria repetindo? - qualquer distanciamento, ou breves lembranças, escuras e sórdidas, não assino abaixo, nem sequer existo. (vozes que enchem singelos balões, olhos que preenchem o vôo, a fuga repentina, o enjôo dos meses, logo, o ovo se parte, três ou quatro quimeras, um sorriso afável, o parto, o horário, eis o nascimento.)

sábado, agosto 15

Restos de cigarros no asfalto bruto

Ainda posso rememorar, e assim descobrir cada astúcia e o desastre, todas as minúcias de um dia abafado, sem enredo ou turva trama, somente o solavanco dos passos sorrateiros, doces aromas embevecidos de mentiras sutis, disformes cores sobre a pele pálida, os lábios pintados meticulosamente, manchando colarinhos e desalinhando certezas, como num descompassar de dúbias aventuras, dois adolescentes inebriados com a fuga e a liberdade, expondo seus modos mais viris e as feridas de outrora, instintos cálidos, transas no antigo porão, poeiras cósmicas a desatinar fantasias, estrelas contadas nos dedos, desenhadas num parco papel, sem espaço para os versos íntimos, o sentido se fez contrário, difusas imagens, cores entrelaçadas, o quadro mais belo dos quadros, comprado em fartas parcelas, para emoldurar o silêncio e a noite, e esta falta de sono dialogando cada traço, a canção distraída, o marasmo dos mares e as ondas que retornam e explodem, invadindo pormenores, dissolvendo cartas presas em garrafas de cobre, repletas de ânsias e vãos devaneios. Os seios da sereia, ilusões postas à prova, promessas bêbadas de amor, promessas sóbrias de amores embriagados, destinos ofegantes, restos de cigarros no asfalto bruto. Pares? Palavra distinta e previsível, quem caminha lado a lado ruma um mesmíssimo percurso. Novidades num jornal popular, notas enfadonhas de um célebre estúpido. Frenesi de encantamentos? Entregas prontamente vívidas, junção de certeiros signos, mapas astrológicos, lógicas vendidas a prazo, num torpe ensinamento de encaixes perfeitos e cenas de tevê, requintados diálogos, notáveis constatações. Os romances dão conta da exata textura, a concepção de um beijo acalorado, idealizações esquizóides e acadêmicas, católicos princípios, salivas e pirocas confundem-se à culpa e ao dissabor, velhos fragmentos de inúteis poemas, poetas nasceram para morrer de asma e nada mais, artistas se drogam por entre as coxias, a história de um lorde abastado de temores, confunde-se aos escassos cafés requentados das tardes de quinta. Roteiros não chegam ao fim, amarguram sílabas em entrelinhas, o cinema é um show privê, gélido e estranho, não me reconheço, centenas de mãos perdidas em zíperes enfadonhos, toda a finalidade é dissimulada, risos frouxos ao final do tórrido ato, e o término das palmas apenas iniciam a jornada dos dias obscuros, cortinas escondem o sol, colóquios mascaram evidencias, a sombra arredia perdida entre os corredores, os olhares esquivos, a resposta inexata. Sobre o fim o que resta é o vácuo, a lacuna partida, frestas entreabertas. O final é o anti-poético, é a soma das sobras, aéreo, fantasioso, amanhãs desenganados, o vestido esquecido, é o toque longínquo, a destreza dos ratos, o sórdido entendimento, a fragilidade. Não há prosa eminente que aponte o tom exato, a contradição de firmes veracidades, madrugadas a fio, livros nunca lidos alastrando retóricas desprezíveis, nada mais importante e digno que o rosto lavado e a nova caminhada, luzes abertas no semáforo, rumos incertos na contramão. Nada além do fim se faz anunciado ou requer elegâncias em usuais concepções. A trêmula voz destemida, o impulso invariável, o cheiro da cinza e o preço do cigarro, o barulho da porta, as chaves esquecidas. A história contada a cada tortuoso passo, já não me cabem suas tramas, nem mesmo os telefonemas, habituei-me ao equivoco. O celular tocou incessantemente às 2:40 e era apenas engano, vulgares colóquios de avassaladoras crônicas, coincidências já desgastadas, assustadoramente usuais, nomes desconhecidos, cotidianos fatos, corpos entregues ao frio, um conhaque ou um gim, algo que inebrie, qualquer frase maldita e insana, algum grito que se faça inteiro, claro ópio. Este quadro ao centro da sala, qual fosse seu sarcasmo, suas culpas e vínculos, nada transparecido ou quiçá transtornado. Sua presença distinta, seu sarro nas esquinas, a velha mobília e os tropeços. Já não mais possuo a verve dos seus tantos passos, os que ditam os gestos, a lamúria e o desprezo. Não anseio costurar desfechos equivocados, eu mal sei de você, meu inicio é o vago jantar que preparo aos frangalhos, os temperos apimentados e alucinógenos, o seu fim pode ser inventado, desvairado de instintos, incerto e difuso. Os seus passos que ditam seu filme retrô, ar de afetuosa donzela, almodóvar-blue tão repleto de meias-verdades. Quanto a mim alimento-me de singelezas, minhas palavras se bastam no vácuo, escrevo para saciar urgências, páginas lançadas do oitavo andar, irregulares e torpes, inexatas na memória de um passante que, igualmente dilacerado, entre pontos e vírgulas e consternações, desvenda sutilezas em minúcias e espasmos, acolhendo sentidos que já não nos cabem.

quinta-feira, agosto 13

Labaredas

Labaredas de fogo
ondas submersas, gozos
alvos estrelados, raros
bárbaros, soldados rasos
acidentes sem percursos
saliências no saguão de trem
a voz do filho que partiu e a noite
a ânsia o anzol a linha o desalinho a falta de rima e a rima
a flama de um mar vermelho
vestido de escarlatina.