quarta-feira, março 26

Berê

O quarto é o mesmo, e amanso meus versos. Não escrevo carta alguma, tenho estado ausente ao mundo. Fumando um tanto, tragando em mim sensações de outrora. Não quero nenhuma sina, almejo um tempo de vagas idéias. Nenhum livro. Talvez um filme. Sempre canções. E lembranças, tantas delas em você. Você? Quem é? O telefone mudo. Não quero imaginar coisa alguma. Deixo um bilhete colado à geladeira, Berê chegará em instantes. "O mar me avistou pela janela, ando escrevendo versos em rastros de areia. Beijos. C!". Berê nunca entende as minhas linhas e escreve atrás das folhas a pequena lista de ingredientes que nos resta para o mês, tenho escrito exclusivamente pra Berê: palavras nulas, histórias vãs. Berê talvez nunca escutou um EU TE AMO debaixo de uma tempestade intensa, nem nunca recitou Drummond bem baixinho numa noite qualquer de uma quinta enfadonha. Berê fala bem manso e usa um lenço branco sobre os cabelos crespos. Não releio o bilhete, desligo o som e pego ligeiro alguma blusa deixada a esmo pela cama. Berê deve rir deveras de mim, Berê é feliz que só ela. O amor quando desfeito é um estrondoso caos em formato de aquarela lúdica, e Berê - minha preta querida! - mal sabe quem foi William Blake.

segunda-feira, março 10

Retórica

E resta em mim uma aventura dúbia de rumar algum caminho, qualquer que seja, que seja meu. Uma esperança insípida que quer colorir-se, invento um traço, transformo imagens em opacos lumes. Penso que estou tentando disfarçar o fato. Paro um pouco. Repenso em tudo o que está por trás do nada que habito agora, esta sala vazia, estes livros antigos. Penso em algo que vi dia desses, num sorriso desconhecido numa sessão de cinema, não...não é de amor que escrevo, é do sorriso largo e vivo, tentei buscar o rosto do rapaz e me perdi em tantos corpos, cenas ensaiadas de um roteiro vago. No final de tudo, olhando os letreiros passando, gostei mais do sorriso. Vivi mais o sorriso, estranho, esquivo, livre. A história do sorriso inesperado, alarmando um frenesi de batimentos em meu peito. Gosto de cinema. Da fila do cinema, das escadas rolantes, dos cartazes enormes, dos atores bonitos, das atrizes peitudas; gosto mais dos diálogos, do prenuncio de sentidos meus. Uma história emoldurando tantas outras, olhos atentos à imagem que nos conta o que a pessoa rude ao lado já viveu, ou viverá. Aquele sorriso me contou um conto, só pensava realmente na retórica de um trejeito sutil, quase escuro. Quis um instante de singeleza, conversar um pouco, falar de minhas sensações. Ando tão sozinho. Busquei no celular algum número latente, e emburrei meu rosto pálido ao me deparar com tantos dois e três e noves e nenhum alguém inteiro, parece difícil lidar com gente, nunca sei ao certo o que dizer, nem o que sentir. Se sinto demais, sangro inteiro. Se nada me atrai eu me firo, pareço perdido em tamanho vazio. Não liguei pra ninguém. Nunca ligo. Também não tocou meu telefone, e já me acostumei. Voltei buscando um caminho, olhando os postes e faróis, lumes reluzindo a escuridão da noite, andei à procura de uma sutileza ínfima, talvez uma flor entre as pedras, ou um papel escrito com caneta meio a copos de plástico, mas o sorriso ainda ressoava em mim, inteiro e cálido, confortante e meu, lembrei de uma canção antiga e não olhei para o relógio, devia ser tarde, devia ser cedo, queria um algo, desconhecia alguns passos, eu me encontrava nos vãos. A noite me ditava nada e era tudo o que eu esperava dela, coisa alguma, nenhum acontecimento, nada de extraordinário, tinha brisa e lua e carros e breus e eu começava a gostar do roteiro, o filme terminava com uma canção antiga e alguém sorriu pra mim meio ao clarão dos refletores, Era você, você aí se indagando sobre os modos e os climas da história, mas juro, escrevi somente pra dizer que seu sorriso me ditou tantos caminhos que, sentado na poltrona de uma sala gélida, eu vaguei por muitos mundos, e lhe disse sete vezes que te amava. É sério. Sorri de volta. A música era linda. E eu sabia a letra inteira.