domingo, novembro 25

Telefonema

- Alô...
- Sou eu...

(naquele Eu reconheceu todas as suas dúvidas, seus descompassos, tantos tropeços. enxergou com minúcia cada palavra não-dita, no torpe silêncio que precede algum desfecho, algum caminho. ressonância atordoante, feito trovoadas, naquele baque monumental, intenso, voraz. foi neste Eu que um dia perdeu-se inteira, e se entregou num labirinto de pernas, nucas, peitos, braços, lábios, e numa noite dessas lacrimejou lembranças, entristeceu todos os porta-retratos, emoldurou canções de amores findos, recolheu cada aroma que restara, qualquer rastro sutil, algum bilhete, uma blusa esquecida, algum pequeno presságio, neste Eu que um dia fora ela em tantas formas, em muitas forças, entrega plena que desfaz-se bruscamente, sem restar tempo algum para compreensões, entendimentos, indagações, ferida ainda aberta que incessantemente pulsa, lembrando, segundo a segundo, o estrago devastador de uma rude tempestade, já não há casa, já não há folhas, versos, já não há risos, não há cortiça, nem planos, nem quartos, as portas já não batem, as chaves se perderam, todas as chaves, trancando em si também todos os vãos sentidos.)

- Ah, oi...pode falar...
- Desculpe estar ligando essa hora, é que eu esqueci de buscar os meus sapatos de festa e estou necessitado deles, você pode deixar na portaria?Passo aí daqui a pouco pra pegá-los!

quinta-feira, novembro 15

Prece

Para Lolló , e para Você e os seus olhos de mar

vislumbres de um novo céu, talvez um pouco menos denso, coisas do verão que chega arrebatando corpos, tempestuoso, monumental, clareando os pensamentos que vagavam moribundos, dando espaço pro azul romper barreiras, celestial azul a encantar olhares, alaranjando as tardes frescas, algumas brisas teimam em bailar rente aos olhos, folhas que voam lépidas, pétalas lúdicas feito o som de um piano, pétalas e piano, flor que supõe-se música, música de se olhar, olhos que se cantam melodias, ouvidas pelo peito ofegante de amor, é tanto sentir que impera no tempo que o azul ganha novas nuances, o crepúsculo nos traz aquarelas, eu vejo os pincéis e as pinturas, e o seu rosto e as pinturas, e a sua boca e as pinturas, e as suas sardas nas costas e todas as ondas lá embaixo – quando eu lhe dizia suavidades neste meu canto de olhar que não é mudez – e em si tudo é música, quando os olhos se escutam e entendem-se dentro, quando um olhar mora dentro um do outro, moradia cálida, sutilezas em focos de lumes que se entrelaçam, iluminando-se e junto clareando os caminhos, quando o amor torna-se além e contagia a natureza com a sua claridade...já tentou pintar o rosto do mar?e dizer o ruído das folhas?e apalpar o sentido de um vento? caminhos emoldurados de encantos, nossos passos desenhando versos, rastros que deixam poesia no percurso rente às águas, um rumo de sutis belezas pincelando sonhos, tão nossos, tão livres, e a minha prece pra que você fique, até não saber mais partir sem mim...

quinta-feira, novembro 1

mergulho de cabeças

Para Lila

porque há decisões
e porque posso escolher
a cor do fundo do poço
verde-limão talvez lilás
vermelho, não
azul-marinho

e hei de acertar os pontos
marcar o X corretamente
há de se ter muita cautela
com poços e cores e fundos
sobretudo

mergulho receoso
claro
plena escuridão de cinza
o poço é cinza, tijolo e cimento
e a cor são idéias e o fundo sou eu
azul-marinho em águas de reservatórios

e posso vislumbrar nuances
a cor do fundo
do poço
e ir
a pé
a pá
que cava a terra
que abre as fendas
que corroe breus
a luz que entra logo dispersa
e volta o breu do fundo sem fundo
e sem cor
sou eu o fundo
sem fundo e sem cor
já não há poço
nem água
nem alma
nem dor
só há vermelho e vermelho e vermelho
e vermelho

lágrimas sutis são poças enfadonhas
quase ninguém percebe que elas me inundam
e matam
poços que se fundem dentro e jorram
borrando a maquiagem da garota pálida
agora nua e vulnerável
verde-limão talvez lilás
vermelho, não
azul-marinho.