quarta-feira, novembro 2

Umbigos

Ainda penso. E as idéias que antes divagavam entre o ócio e a poeira
das palavras, agora desembocam neste sobressaltar de dois ou três
segundos em que os olhos se encontram e se perdem, se pedem, e então
rejeitam qualquer migalha de certeza sobreposta de passados e futuros
que, em você, confundem-se lineares aos meus fragmentos de presságio.
Como quando te quero sobressaltadamente, e logo te extirpo do meu
rosto, cabelos, mãos – já não sabem onde tocar -, lábios, braços,
jantares e feriados. Porque também focar, e já não ser somente o foco
central que se permite acenar e sorrir de banalidades assusta e
reverbera esta minha ânsia de jamais querer o seu casulo, seu abrigo,
sua casa de palha, madeira, cimento. Então assopro, até passar, passa.
Não acho natural, conveniente, palpável, me embrenhar em seu pescoço
desvendando suas montanhas, estradas, vales escondidos, naufrágios
póstumos, não reconheço as siglas, senhas, fendas, e em mim impera
uma frieza dissoluta que ora alterna em calor viril e logo dissipa,
arrediamente, reinando o inverno da Islândia nos meus desvarios de
lord inglês, que mal te percebeu num primeiro, segundo, quarto
momento, e não perceberia não fosse o seu ímpeto de sempre enxergar
nitidamente o que está além destas retinas fatigadas de tantos outros
que, juntos, não formam sequer um mosaico abstrato nas suas tentativas
de supremacia, rente aos meus oásis, lambendo de sede a minha língua,
fulgurando as tentativas de escape, o que não estava ciente é a
vitalidade da minha presença em seus traços, cores, formas,
inspiração. Como se a musa das minhas melodias construísse
visceralmente cada aresta meticulosa desta tela íngreme e revestida de
sutilezas que você esboça com a minúcia de artista besta que confunde
aplauso com companhia e amor com repúdio. Porque ter em tese o mundo
aos teus pés te impossibilita de estar nas mãos de alguém, e a gente
entende dessas coisas de lapidações, veemências, brados, cismas,
raridades. Porque comum é o amor, corriqueiro, arcaico. Amo, talvez. O
seu umbigo e o meu. Talvez, sim, sejamos absolvidos por ousar o
simples. O próximo. O possível. Fomos gerados por infinitudes, e ainda
não sabemos onde terminam os nós e desabrocham os Eus. Onde se
encerram os sustos e recomeçam as tramas. Embevecidas de gim, café,
conhaque, aspirina. Calendários, calores, carícias, inícios. Como
quando o mapa-mundi do meu corpo te transforma em universos e planetas
que só eu sei o nome. Caminhamos em outras luas. Outros mistérios.
Enquanto seus abismos amortecem os meus passos. E as
minhas fugas, ironicamente, confortam suas faltas.

quarta-feira, outubro 5

Me dá um cigarro

Deu a última tragada, lançou a binga como num arremesso frenético o qual se pretende fazer uma cesta de três pontos, aquela que salvaria toda uma partida visceral e ofegante, em seus últimos instantes de bola quicando, pegou do bolso o maço já amarrotado e roto e, sem encarar por mais que dois segundos aquela face sórdida de rato-humano à sua frente, ofertou o pedido sem mesmo esboçar qualquer fisionomia contendo sequer um mínimo de animosidade e logo adiantou o ritmo demasiado de seu andar, puto dentro das calças, extremamente puto, muitíssimo puto, puto pra caralho, envolto de pensamentos que emergiam no mesmo abismo gélido e aborrecido que havia se deparado em suas tantas buscas labirínticas e mordazes, bêbadas, turvas, ziguezagueando por demais esquizofrênico, feito um mosquito que, após sugar o sangue quente de uma coxa robusta, sofre um tapa incerto, embora impactante, e alça um vôo desmedido e irregular, sentindo a dor terrível nas mesmas patas imundas que agora limpam o sangue dos cantos da boca, quase sorridente, em sua ínfima importância de ser só e tão somente o alvo preferido de uma guerrilha munida de sprays e pastilhas, prontas para mandar aqueles lixos alados para o inferno, “que mordam o diabo!”, mas eu dizia do moleque que pediu cigarro irritando ainda mais o juízo já efervescente de nosso herói sem mocinha, não pelo cigarro, foda-se o cigarro, mas pela chateação grotesca de ser parado no meio da rua e imediatamente desviado de suas conclusões e disparates mais cretinos e insanos. Desceu as escadarias do metrô, universitários barbudos e punheteiros, garotas com roupas que mais lembravam uma nítida regressão a uma infância decadente, muito pouco, ou basicamente nada construtiva, alguns trabalhadores engravatados com a face rude, contendo alarmantes olheiras, de quem simplesmente degusta uma realidade com cheiro de merda e pinho-sol, se ajeita num canto mais destacado, como se fosse possível em plena 18 hs na estação Cinelândia, uma bossa-nova enfadonhamente careta e regrada ressoa das caixas laterais, cessando toda a malandragem e descompromisso dos reais motivadores desta manifestação musical, e os dizeres redigidos em letras garrafais transmitidos nas tevês de plasma, em português e inglês, enfatizando o espírito “maravilha” dos cariocas e convidando cinicamente os turistas a embarcar neste movimento, quando o que se percebia ao redor era um amontoado de ações fugidias e vorazes, abstrai estes pormenores até escutar o ferro dos trilhos estremecer e logo avistar o transporte se aproximando, entra sem olhar para os lados e tenta se acomodar com tamanhos olhares que mutuamente se revezam em sua direção, já que dentro do metrô não há mesmo um menu extenso de possibilidades no que diz respeito ao que será olhado, o jeito então é cada um se encarar sutilmente ou almejar se distrair com a escuridão atordoante por detrás dos vidros, segue contando mentalmente o número de estações, já sabendo de cor o que dirá a voz fantasmagórica da locutora, chega a sua vez, “Próxima estação, General Osório, desça à direita”, sai esbaforido daquele compartimento, sobe as escadas rolantes observando, por rotina, os quadros e mosaicos que decoram o ambiente, enfim chega à calçada e então caminha pensativo pelas ruas de Ipanema, já elaborando todo o texto que será dito para desmistificar todo o caos, pensa inclusive no tom mais preciso para se iniciar a primeira frase, a entonação ideal que virá a seguir e assim por diante, tudo minuciosamente planejado e arquitetado pelo herói sem mocinha, enraizando desmedidamente furor e agonia em seu peito dilacerado da falta latente e crua das coisas mais simplórias e habituais, o café recém passado e o jornal sobre a mesa, o baticum dos saltos dela sobre o chão da sala, o desconcerto de ambos ao ter que escolher produtos que jamais usaram nas compras do mês, a revista de moda que ela lia o fazendo gargalhar de suas fisionomias deslumbradas, o romance de Sacheri que compartilhavam nas tardes de sábado, os tênis e meias que ele deixava relapsamente sobre o tapete do banheiro, a sua pinta na bochecha que ela adorava beijar e agora habita solitária e nostálgica em sua face pálida e descabida.

- Ô prayboy! Erva, cocaína e crack. Erva de 10 e 25. Cocaína de 30. Crack de 5. O crack tá “envolvente”, saca de “envolvente”, né mermão? Tá “envolvente” pra caralho, pray!

Ele faz que não com a cabeça e continua a sua caminhada, escutando a seguir a mesma chamada do aprendiz de traficante para outro transeunte.

- Ô prayboy! Erva, cocaína e crack. Erva de 10 e 25. Cocaína de 30. Crack de 5. O crack tá “envolvente”, saca de “envolvente”, né mermão? Tá “envolvente” pra caralho, pray!

Dessa vez o trafica teve mais sorte, o “pray” do momento resolveu fazer compras no mercadinho, e passou apressadamente por ele cheirando a trouxa de maconha para definir a qualidade do produto, até sumir completamente de sua visão dobrando uma próxima esquina. O herói sem mocinha atravessa o sinal já sentindo o baque incessante e impetuoso bombeando seus músculos e artérias, rumando a direção da praia, logo avista o seu prédio, agora dela, cumprimenta uns vizinhos que passeiam com os cachorros, vizinhos estes agora dela, entra rispidamente no edifício, agora dela, e faz uma piada infame sobre o último jogo do Flamengo com o porteiro, agora dela. Abre a porta do elevador, aperta o botão número 7, e fica alternando entre se observar no grande espelho ou se perceber registrado pela câmera acima de sua cabeça, bobagens com o intuito de esmaecer o conjunto de reverberações ensurdecedoras que lhes cabe. Espirra três ou quatro vezes, enumera respostas a serem ditas de imediato, sem deixar restar qualquer instante de desconfiança, sombreia uma maneira particularmente peculiar de direcionar o seu olhar quando a avistar vestindo uma blusa velha, grande, com o desenho do Mickey à frente, e seus cabelos deliciosamente presos num coque, enfatizando ainda mais as formas delicadas de seu rosto, a sua face fingindo surpresa, enquanto lhe diz numa frieza também calculada que já está terminando de pintar as unhas dos pés, desnudos e salientes bem ali próximo aos seus lábios que anseiam lambê-los, e que assim que der a última pincelada irá passar um café fresquinho, quando ele dirá que não precisa, que ele mesmo pode passar o café e que ela pode, isso ele dirá obviamente irônico, continuar a sua experimentação acerca dos desfrutes aborígenes de colorir o próprio corpo, ela responderá prontamente, retirando o palito que segura com a boca, que tira o excesso de esmalte nos cantos das unhas, já que ambas as mãos estão ocupadas entre pincel, frasco, algodão e acetona, que nunca ouviu falar disso e que ele não tem consistência real e relevante do que acabou de citar, ele prontamente irá dizer que leu no Google, e ela cairá em gargalhadas, deixando o pincel cair para alivio dele, dizendo que o Google não possui fontes realmente plausíveis e que qualquer filho da puta pode criar um site e dizer, por exemplo, que possui o manual secreto que acarreta no modelo de conduta de um casamento exemplar do tipo que o marido, em nenhuma hipótese, transaria em cima da mesa do escritório com a putinha da secretária que mal fez dezoito anos, o que fará com que sua face exploda num fogo transparentemente visível e o deixe consternado buscando qualquer explicação notória, que faça um mínimo de sentido, excluindo imediatamente todas as possibilidades de respostas e pensamentos os quais ele já vem elaborando a dias, incansavelmente e incessantemente. O elevador pára no quinto andar, as portas se abrem, uma bichinha com reflexos nos cabelos lhe pergunta, mais feminina que a sua sobrinha enquanto brinca de boneca, pondo os braços dentro do elevador para fazer com que, propositalmente, ele não prossiga.

- Tá descendo?

O herói sem mocinha indica com os dedos que está subindo, a bichinha ainda faz mais algumas retaliações sobre o elevador até que finalmente deixa ele seguir o seu destino, o indicador digital prediz sexto andar, respira fundo, sétimo andar, chegou o momento de então desfazer todas as atrocidades que pairam nas entranhas já abarrotadas de cismas, neuroses, mágoas, olhos marejados, fragmentos de um passado onde juntos esboçaram planos e idealizações, e andaram com ar de casal vinte pela orla, é o momento de desfazer qualquer insulto e despudor da cena catastrófica o qual foi surpreendido por ela, a hora de cessar esta lacuna densa onde habita o inverno da Islândia, caminha demasiado pelo corredor, reconhecendo-se em cada parte mais minúscula daquele caminho, até chegar frente à sua porta, agora dela, que escutará o barulho das chaves do herói sem mocinha, como em todas as noites em que viveram ali, e fatalmente irá dizer lá de dentro que o jantar está quase pronto e se ele sabe onde pôs as taças que sua mãe trouxe de Curitiba, hoje não disse coisa alguma, ele já esperava, reformula olhando para a porta todas as frases de impacto que almeja dizê-la, abre cautelosamente, em passos curtos, todas as lâmpadas apagadas, “ela deve estar dormindo”, acende a luz da sala num rompante de nervosismo e desespero, seu olhar confunde-se entre o pânico e a desgraça, não há ninguém ali, sendo mais exato, claro, é o que vocês esperam, não, não há nada ali, mobílias, luminária, tevê, quadros, bar, chinelos, fios de cabelo pelo chão, cheiro de café, não há nada, o que ali habita é um cheiro de ócio, de tempo parado, de instantes corrosivos e parcos, o apartamento lhe parece ter envelhecido algumas décadas, o seu corpo se esmera para não tombar neste ambiente inóspito e lúgubre, o herói sem mocinha insiste em caminhar pela sala, depois até a cozinha, se impressiona porque nestes momentos de tormenta é tomado por uma calma quase dadaísta, fica anestesiado, ao ponto de entrar no banheiro e fazer um xixi, pensa, repensa, transpõe as mais variadas lógicas e os mais mórbidos sensos, quanta aberração, quanto surto, e estas entrelinhas dando margem à esta infinita variação metafórica, qual o sentido, a coerência, o porquê. Ou ela esperava o primeiro vacilo realmente feroz do herói sem mocinha para simplesmente dar no pé? Não, ela não esperava. Ela o amava, ela o disse que o amava, várias vezes, muitas vezes, de todas as maneiras. Fica paralisado até sentir um misto de soluços e gargalhas, procura um sofá, não há mais sofá ali, lembra-se, e continua enlouquecendo nesta conseqüência de choro e riso nada eloqüente. Vai fumar na janela, um, dois, três cigarros, sem café. Porra, sem ela e sem café. Quanto desespero! Quanta abstinência! Ele ainda não entrou no quarto, será por demais forte pra ele adentrar no local onde muitas vezes se amaram, e disseram-se coisas deles, tão deles que não me cabem trazer à tona, tampouco cabem mais neste espaço oco onde a ressonância da voz trêmula não responde com o mesmo eco, parece dizer “Tenha calma. Ou não tenha calma. Não importa. O fato é que você já não tem ela, herói sem mocinha. Então rezar um terço ou socar a parede só resultará na ignorância eminente de quem seca gelo para resolver uma equação de álgebra. Portanto, soque o terço e reze a parede. Ou então, vá comer de novo a putinha! Ou pedir cigarro na rua, ou vender crack de 5, ou dar a bunda embaixo da bandeira, otário!”, a porta do quarto ainda está fechada, ele a abre laconicamente, não a vê deitada na cama – imaginária - assistindo a novela das sete, bocejante e frágil, linda assim sem maquiagem, linda assim sem colar de pérolas, linda só de blusão e calcinha, sua. Avista de imediato o seu violão num canto enfadonho, abaixo do instrumento, encontra um papel dobrado, meticulosamente dobrado, cuidadosamente dobrado, senta ligeiro no chão, desdobra ágil o papel, é ela, é a letra dela, cara, veja, é um bilhete dela, mais valioso que todas as mobílias e fios de cabelo pelo chão, um bilhete dela, pra ele.

“As feridas em carne viva. Ponho merthiolate, arde tanto, eu sopro, sopro e sopro de novo. Até passar, não passa. Não tenho mágoa, não tenho ódio, tampouco almejo vingança, nem. Me perguntam de você, digo que não sei, então se espantam em demasia e eu quase enlouqueço. Nunca perguntam de mim, porque caso perguntarem, direi que não sei também. Iriam tentar me internar, talvez, ou me indicarem um cruzeiro, uma vodka, um marido. Eles teimam em insistir numa fisionomia áspera e decisiva, como quem sabe realmente o que fazer quando acaba a luz e não há ninguém em casa para dividir as suas faltas. E, sabe, tem me faltado tudo. Inclusive você. Quanta ironia! Pra me fazer curativos e um chá de pitanga que cure esta gripe, adquirida, claro, pela baixa imunidade que você me causou. Você é o culpado, é também um canalha, um pervertido, é portanto, homem e, sinceramente, não há mesmo mutações nesta espécie que faça, de fato, diferenciar nitidamente um do outro. Eu sou outra. Você é outro. Será exatamente isso? Acho que não, não mesmo. Eu acho um monte de coisas, seus óculos, suas meias, seus livros de cifras, suas revistas velhas, minha saudade, meu amor doído, este que necessita de um antipirético, um antialérgico, um antigripal, um antes. Antes daquilo. Antes disso, destas feridas, destes abismos. Antes das 22, te espero aqui, Rua Assis n° 18, ainda estou arrumando toda a bagunça, preciso de alguém que ponha os quadros, as cortinas e troque a lâmpada do quarto. Preciso de alguém que sorria dos meus trejeitos, que implique com os meus barulhos de manhã e que me faça crescer até quando me encontro emaranhada de tristezas que não cabem neste meu coração carnavalesco, acalorado, exaltado de sentimentos que transbordam. Você é um filho da puta! E eu? Eu sou tua.”

quarta-feira, junho 29

No cimento

A tormenta aproximando-se em passos largos encobrindo o horizonte, vejo-te longe, ainda mais que a tormenta, bem mais, além, ali ao lado, ouvindo Aretha Franklin entre diálogos surdos, não ouço, não digo também, fumo um cigarro na janela fingindo enxergar algum ponto, sem nó nem nós, estas metáforas cafonas emoldurando as vestes, os cadarços sujos, o sorriso assim de lado, com a graciosidade de um besouro ou um camaleão. A fuga dos dias, cafés requentados, minúcias expostas em formato macro, os versos relidos, desgastados pelo tempo dos sentidos que tornaram-se ambíguos, vãos, vão-se trêmulos, encarnados num rompante de reverberações e cismas, um montante inumerável de fraquezas brutas, a ruptura do ciclo, este desfecho reticente, anunciação de veemências e rastros de seus passos no cimento fresco, baque impetuoso, pancada brusca, revés de trovoadas vindas de dentro do que há de mais dentro de suas variações, idéias vagas, rasas razões, hora de partir, de partir-me, um duo de um, apenas um, mais um cigarro e outro e outro e outro café requentado. Que a tormenta desbaste este eco, este oco de protuberâncias ínfimas, e lavre...lavre...lavre...livre inunde...a cadeia das horas que já não nos cabem.

quinta-feira, junho 23

Como vão as ondas?

Como vão as ondas

Da sua televisão?

O que os outros vãos

Tudo é contramão

Não é nada não

É que eu sou tranqüilo

Vivo com as mãos no chão

Andando com os pés no céu

E essa coluna?

E as tantas colunas

Que já não suportam

Seu peso sem asas

Tomara que caia

E o sabor das brumas

O temor das rimas

O estar por cima

Sem querer gozar

Ainda, ainda...

As tantas lembranças

O trabalho às pampas

Se sujar, se lança

Se for cor, carmim

Caminho na chuva

Sigo enluarado

Mas fazendo sol

Em domingos

E feriados

terça-feira, abril 12

Desdobrando os labirintos

Rememorando fábulas, estremecendo rancores, não abro as cortinas, o horizonte me elucida de furor e amplidão, e o que almejo é tão...simplório, sutil anseio, lépido presságio. Acendo um cigarro, espirro três ou quatro vezes, rio, rio, rio de mim mesmo, depois de você, depois de nós dois juntos naqueles patinhos da Lagoa revelando-nos que não há qualquer romantismo lúdico por entre as pedaladas freneticamente intensas que tínhamos que ofertar pra fazer aquilo estar em movimento continuo, com alguma direção relevante, quase enfartamos, e quando atingimos à proa, tontos de taquicardia, comemoramos aturdidos a nossa chegada desta prova de veemente resistência, “pedala você agora...”, “porra, to pedalando...”, “pedala mais, caralho, eu quero sair daqui...”, quando todo este impulso de baques impetuosos soavam “ porra, eu continuo te amando”, “te amo mais, caralho, eu quero estar com você” , estes sentidos implícitos que nos tomam de fervor e fúria, mas não era bem isto, isto é, o texto, não aspirava escrever sobre nós, você já sabe me ler de forma extremosa e cada verso teu ressoa em mim de modo plural, qual fosse nosso, entende? Entende, entende sim. Olho os quadros dadaístas na parede, caminho errante pela sala, de um lado a outro, desdobrando os labirintos, estes momentos sós, a solidão prediz perguntas, respostas, perguntas, perguntas, é vital concebê-las, nos molda em estado de amplidão, enxergando as perspectivas em paralelos relevantes, factuais. Preciso de um argumento, um frenesi tempestuoso que faça valer cada linha exposta e sobreposta entre tantas palavras embaralhadas que, juntas, podem até formar um mosaico abstrato, de cor carmim, com nuances nuas. O sentido é seu, a loucura é crua, a porra é quente, o suor é frio, quando perpassamos por entre estes becos esquivos e ratos-ratos e ratos-humanos nos pedem cigarros ou cobram quatro reais por um boquete, breus que trago à tona, emaranhados, sublimados, enfeitados em seu mais vigoroso cerne, vírgula à vírgula, tudo premeditado aos caos, onde já não caio mais, foi o precipício quem me revelou, quando o surto se cessa e o que resta de ti é simplesmente o infinito, ora quantas estradas pra trilhar, eu já lhe disse isso, vou repetir, de-va-gar-zi-nho, sussurrando em seus ouvidos que comportam estes brincos de pérolas falsas, caso não forem, foda-se, não me implicam penduricalhos e ínfimos adereços, vou te dizer, é o seguinte, você poderá tentar, sentir o peito se abrir e revelar todos os pormenoresemaiores e tormentos tão chulos que não valem sequer um bocejo teu, não é tão fácil adestrar os que tem asas, diria Caio F. mais ou menos assim ou exatamente assim, e você as possui, eu vejo, claramente nestes turvos NÓS nos cadarços sujos de seu tênis, e quanto à NÓS, ein?Você é foda!Não um foda do tipo “nossa, que habilidade mental no quesito reflexões impactantes”, é um foda do tipo “Você é um filho da puta, mas cara, veja, eu também sou, então podemos andar juntos”, é o seguinte, contra as demências, psicoses, alienações, desvarios, ainda existe um elixir, isto se você quiser, quiser mesmo, intensa e grandiosamente, lá no fundo do seu mais vital casulo, guarde isto em seu bolso, esta vibração de meamdros, essa bula de remédio: QUANDO PULEI DO ABISMO, DESCOBRI QUE SOU PASSARINHO...E VOEI.

segunda-feira, março 7

Embora

Não te prometo amor. Não almejo lisuras, salivas embevecidas de um conhaque, um gim, um anti-ácido, uma porra. Te olho enquanto você fuma assim deitado de lado na cama, ouvindo Madeleine como quem adentra num sem fundo de destemperanças, tenho muito a fazer, meu amor, muito a caminhar, depois parar um pouco, tirar as pedras dos sapatos, então seguir me equilibrando entre os abismos, lembrarei, lembrarás, recordarei dos fatos, das tramas, das transas, dos tapas. Mas hei de ir, eu sei, você deseja um tempo breve, uma semana, duas, talvez suporte três, embora o meu descompassar de dias não lhe caberá no calendário roto demasiadamente descontrolado, como não coube meus descaminhos, meu riso frouxo, a barba por fazer, a blusa com o escrito “Amy way of life”, ok meu bem, deixo ela pra você, a Amy, a barba por fazer, o riso frouxo, os descaminhos, sigo como quem sacia a fome devorando a carne crua e quente de um besouro, um marimbondo, deixando aquele ranço rascante e turvo na garganta, passará este vácuo, livrará estes sustos, me permito ainda algum delírio, um anseio, uma lástima, parto sem o coração, este dos apaixonados desenhado em vermelho entrecortado por flechas, resta-me um músculo, paredes, artérias, pouco partido, claro, partindo, um tanto perdido, confesso, mas não posso permitir desmoronar o meu Farol, cuide, cuide sim, cuide muito, por favor, da tosse, dos surtos, das plantas, dos quadros dadaístas na parede, dos discos emblemáticos que, convenhamos, você os amou mais que a mim, é agora, exatamente, assim meio ao meio, meio a esmo, partirei rumo ao meu abrigo, cá dentro, meu arpoador, um inferno blue, quiçá, paraíso cinza, com flores resistindo à crueza do asfalto e reinando frígidas pelas frestas que lhes restam. Bambo num talvez, num jamais, em nunca, nunca mais voltar. Porque me basta este baque impetuoso de fúria e vendaval que fere os lábios. Oscilo o fim, o desfecho, o término brutal. É este, este aqui, o mórbido adeus. O trôpego. O sórdido, mítico. Adeus-Adeus. Até o romper da aurora inatingível pincelando o horizonte, lá de onde você me olha, encharcando os pés no mar. Deixo a chave embaixo do xaxim, e uma xicara de chá posta sobre a mesa juntando-se a uns versos que se esmeram em desespero e despedida. Em tristeza desmedida, só para rimar com sutileza. Uma esperança amarga. Um corromper de brados. Não volto, não rogo, não choro. Não agora. Enquanto te vejo emaranhado, encolhido em cócoras, disfarçando a loucura. Adeus. Adeus, você. Mas não te prometo, amor.